Amiga do Arquivo e da Fundação da Casa de Mateus

A Professora Heloísa Bellotto foi uma investigadora e comunicadora notável com uma paixão pelos arquivos particulares e pelas histórias cruzadas de Portugal e do Brasil que a conduziu a um convívio próximo com a Casa de Mateus ao longo de quase cinquenta anos. A sua curiosidade inesgotável e a ambição de juntar o conhecimento do «lado de fora do documento» com o seu estudo como fonte material, levou-a a cursar em simultâneo biblioteconomia e documentação na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que concluirá em 1956, e história pela Universidade de São Paulo (USP), onde virá a licenciar-se em 1959. Entre 1972 e 1976, realiza o seu doutoramento enquanto investigadora do setor de História do Brasil do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e é aí que nasce o fascínio pela personagem complexa de D. Luís António de Sousa Botelho Mourão, 4º Morgado de Mateus e Governador e Capitão-General de São Paulo entre 1765 e 1775.

Em 1974, em pleno período pós-revolucionário, visita pela primeira vez Portugal, seguindo o «itinerário do documento», em busca de aprofundar as pesquisas já realizadas em Arquivos brasileiros. O mergulho nos Arquivos da Casa de Mateus permite-lhe concluir a tese de doutoramento em 1976, com o trabalho ‘Autoridade e Conflito no Brasil Colonial: o Governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765/1775)’, um estudo detalhado sobre as diferentes formas de afirmação de um poder colonial com desejo estratégico, nas suas dimensões militar, mas também de administração e planeamento territorial, ou de compreensão da dimensão cultural de uma metrópole que, à altura, apenas se podia sonhar.

Desde então, a relação da Professora Heloísa Bellotto com o legado de D. Luís António e com o Arquivo da Fundação da Casa de Mateus ultrapassou sempre a mera relação com um objeto de estudo. Talvez por uma identificação matricial com o rigor arquivístico do Morgado, que não ignorava o valor do documento e da sua salvaguarda, mas acima de tudo sabia que as aprendizagens que cada tempo nos traz apenas se projetam se forem minuciosamente descritas e preservadas em arquivo para memória futura. Desta relação, nasceram outros frutos importantes, como a transcrição e estudo das mais de 500 cartas trocadas por D. Luís António e sua mulher, D. Leonor de Portugal, trabalho publicado em livro, em 2007, com o título ‘Nem o Tempo Nem a Distância. Correspondência entre o 4º Morgado de Mateus e Sua Mulher, D. Leonor de Portugal’.

No dia 7 de dezembro de 2021, a Professora Heloísa Bellotto abriu o Seminário “Revisitar e inovar: acervos e novas frentes de pesquisa sobre o período do governo do Morgado de Mateus no Brasil Meridional (1765-1775)”, coorganizado pela Fundação da Casa de Mateus e pela Universidade Estadual Paulista, com um relato emocionante dessa aventura de quase cinquenta anos, mas sobretudo com a proposta de novas frentes de trabalho e a revelação da sua entrega ao trabalho de transcrição e estudo do Diário do Governo mantido por D. Luís António ao longo dos dez anos à frente da Capitania, manancial que esperava desse lugar a novas frentes de investigação.

Hoje, dia 2 de março de 2023, a Fundação da Casa de Mateus e a sua Diretora-Delegada, Teresa Albuquerque, despedem-se da Professora Heloísa Bellotto com profundo pesar e reafirmam o empenho em prosseguir o seu esforço de divulgação deste património único, que atravessa o Atlântico e nos une numa memória comum.

“Estou comemorando 50 anos de contacto com o 4º Morgado de Mateus e quero falar um pouquinho da minha trajetória em relação aos meus estudos sobre D. Luís António. Em 1971, eu estava na Pós-Graduação na Universidade de São Paulo, me preparando para começar a pesquisa da minha tese de Doutorado e queria trabalhar com o período colonial, com o século XVIII, que era uma época que me fascinava. Porém, eu ainda não tinha um tema de pesquisa para a minha tese.

Num dos cursos da minha Pós-Graduação, a Professora Maria Teresa Petroni, que depois acabou sendo a orientadora da minha tese, falava sobre a economia açucareira e como se conseguiu levantar a economia de São Paulo num período difícil em que a Capitania estava em decadência. A Professora chamou a atenção de que o começo da revitalização de São Paulo se devia a um governante colonial, o Morgado de Mateus que, infelizmente, era uma pessoa ainda pouco estudada, pouco conhecida no Brasil. Aí, em 1972, eu escolhi que faria o meu Doutorado sobre o governo do Morgado de Mateus em São Paulo.

Comecei as minhas pesquisas, pesquisei o Arquivo de São Paulo, do Rio de Janeiro. Em 1973, pedi uma bolsa ao Ministério da Educação Portuguesa e estive todo o ano de 1974 em Portugal. Naquele momento tão importante da História portuguesa, passei pesquisando vários arquivos portugueses, sobretudo a Torre do Tombo e o Arquivo Ultramarino… Defendi a tese de Doutorado e o meu livro [“Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775)”] foi publicado em 1979 e assim o Morgado de Mateus passou a ser mais conhecido. Porém, eu desconhecia os anos de D. Luís António quando voltou de São Paulo, isto não estava nos Arquivos de São Paulo, mas nos Arquivos da Casa de Mateus.

Na segunda edição do meu livro, pude acrescentar os capítulos relativos ao regresso de D. Luís a Portugal, quando nos anos 2000, o D. Fernando de Albuquerque, titular da Casa de Mateus, descendente de D. Luís António, me convidou: ‘venha para Mateus, venha usar o Arquivo e escolha o assunto que quiser para explorar o nosso Arquivo’. Nestes primeiros anos do século XXI, estive constantemente por longas temporadas em Mateus e escolhi trabalhar com a correspondência entre D. Luís e D. Leonor durante a vida do casal. O livro [‘Nem o Tempo Nem a Distância. Correspondência entre o 4º Morgado de Mateus e Sua Mulher, D. Leonor de Portugal’] saiu em 2007 e, nesse mesmo ano, pude fazer a 2ª edição de ‘Autoridade e Conflito no Brasil Colonial’, acrescentando tudo o que aconteceu com D. Luís depois que ele voltou de São Paulo.”

Heloísa Liberalli Bellotto, 7 de dezembro 2021, na abertura do Colóquio “Revisitar e inovar: acervos e novas frentes de pesquisa sobre  o período do governo do Morgado de Mateus no Brasil Meridional (1765-1775)”.